Ìségún

Isegun

Lu Ain-Zaila
Monomito Editorial
120 páginas
Lançado em 2019

Na adolescência, resolvi me incluir no mesquinho grupo de leitores que enxerga as obras literárias de fantasia e de ficção científica como trabalhos inferiores e reverencia apenas os grandes mestres, como Tolkien e Asimov. Imagine só, diria a eu adolescente ignorante, ler ficção científica sobre afrofuturismo cyberfunk escrito por uma autora brasileira!

Ainda bem que me consertei a tempo de ler tudo isso em Ìségún, livro de Lu Ain-Zaila, publicado pela editora Monomito. A capa, ilustrada por Asalamandra, me encantou imensamente. Já a leitura me absorveu completamente em dois dias. Em 117 páginas, a autora prevê o Brasil imerso em um quase apocalíptico caos ambiental, onde a segregação social e racial persistem em espaços urbanos poluídos de forma insustentável para a saúde humana. Lu Ain-Zaila não se estende em descrições complexas dos acontecimentos que levaram a essa realidade, até porque não é necessário. É fácil entender agora como o nosso futuro será sombrio. Uma coisa é certa, como explica a protagonista Zuhri: “a ignorância plantada pelo sistema foi a grande pandemia a assolar o mundo”.

Em Ìségún, é possível constatar que a desigualdade social não só sobrevive, como se adapta a qualquer possibilidade futurista. Ricos e brancos com uma qualidade de vida menos pior vivem na Cidade Alta, com acesso a equipamentos de proteção, enquanto pobres e negros se afundam em lixo tóxico na infraestrutura insuficiente da Cidade Baixa. Mas, no contexto do livro, tão real quanto o nosso presente, há resistência e luta contra um sistema que se torna mais opressor à medida que precisa lidar com as consequências globais de suas escolhas focadas no lucro.

Essa resistência, diferentemente da maior parte das ficções científicas especulativas, é protagonizada por mulheres negras, como Zuhri e Ayomide, personagens centrais da trama. O enredo envolve as heroínas em investigação policial e espionagem industrial para abordar temas relacionados à biotecnologia, esgotamento de recursos naturais e racismo estrutural. Quando a policial Zuhri vai à sede da corporação Alphabio, localizada na Cidade Alta, para se apresentar como detetive do NACCOAH (Núcleo de Combate a Crimes de Ordem Ambiental-Humana), ouve uma gracinha da recepcionista: “Desculpe, não temos vaga de produção aqui”.

Mas não se engane: essa não é uma narrativa estereotipada do sofrimento do povo negro. Pelo contrário, o mais incrível do livro é a quebra da racionalidade tecnológica e futurista com a contraposição de uma cultura africana ancestral, que se alia às atuais demonstrações de resistência das periferias. Usando tanto o conceito do awa, originário da mitologia negra, como a força de uma rádio pirata subversiva na Cidade Baixa, Lu mostra que há diferentes formas de luta e novas possibilidades de futuro. Por isso, a resistência cyberpunk de Ìségún torna-se cyberfunk. Como a própria autora alerta “não é uma simples mudança de ‘p’ por ‘f’. Vai muito além disso. A ficção especulativa afrofuturista abraça a ginga das periferias, das bordas e cercanias dos centros.”

No afrofuturismo de Lu Ain-Zaila, a especulação é tão tangível que direciona nosso olhar para o presente. Esse é o objetivo de uma boa obra de ficção, que Ìségún alcançou com sucesso e sem sutilezas. Em um momento do livro, a personagem principal entendeu que ela, a mãe “e toda a vizinhança éramos mortes certas, aceitáveis, de pouco valor, pois morávamos numa zona de sacrifício, lugar de gente pobre com pouca voz, pouco poder de dizer não e muitas vezes sem chance de um futuro. Até quando?”. Essa pergunta não é mera especulação ficcional.

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Thainá Carvalho é poeta, resenhista e editora da revista Desvario.

[ Resenha publicada originalmente na revista Desvario. ]