Nelson de Oliveira (organização)
Sesi-SP editora
496 páginas
Lançado em 2018
Quando você pensa em literatura de ficção científica, quais são as autoras e os autores que primeiro vêm à sua mente? Quantos deles são brasileiros?
Que o leitor não se envergonhe se não conhecer nenhum, ou que não lhe venha à cabeça um nome imediatamente. Afinal, a ficção científica é um gênero dominado, tanto na literatura, quanto no cinema e na televisão, por obras e produções estrangeiras. Veja o sucesso que os livros de Ursula K. Le Guin e Philip K. Dick fazem nas livrarias; ou a atenção que recebe a série Black Mirror, que possui um apelo até mesmo para os que não se interessam tanto pelo gênero.
E os brasileiros, por onde estão?
Talvez não seja de conhecimento geral, mas o Brasil é um país com uma produção riquíssima nesse gênero, especialmente na literatura, seja em romances como a distopia best-seller Não Verás País Nenhum, de Ignácio Loyola Brandão, seja nas narrativa mais curtas, como o conto e a novela. E, quanto a esse tipo de narrativa, a coletânea Fractais Tropicais: o melhor da ficção científica brasileira, lançada pela editora Sesi-SP em 2018 está aí para sanar uma injusta falta de atenção que a produção brasileira dentro do gênero recebe.
Organizada por Nelson de Oliveira, Fractais Tropicais traz contos de nada menos que trinta autoras e autores, cobrindo a produção brasileira de ficção científica desde 1960 até a data de sua publicação. A introdução detalhadíssima escrita por Oliveira faz um panorama da história do gênero no país e apresenta as classificações e definições de seus muitos subgêneros (por exemplo, o cyberpunk, a ficção científica hard, a ficção científica soft etc.), servindo como guia para os não iniciados, e uma porta de entrada provocativa para os curiosos.
“No Brasil, a verdadeira literatura marginal é a ficção científica.”
Com essas palavras, Nelson de Oliveira lança uma provocação ao leitor em seu ensaio introdutório. Os pioneiros da ficção científica brasileira podem ser encontrados já no século XIX, influenciados largamente pelas obras de H.G. Wells e Julio Verne, mas é nos anos 1960 que o gênero passa a florescer de verdade, mesmo que ignorado pelo grande público e pelos acadêmicos.
Desde então, a ficção científica brasileira se diversificou tanto que a coletânea divide essa produção em três períodos diferentes, chamados de ondas: a primeira onda abarca a produção de 1960 a 1980. A segunda onda vai de 1980 até a virada do milênio, e a terceira onda engloba toda a produção dos últimos vinte e tantos anos.
Um detalhe que torna a coletânea ainda mais interessante é a forma em que traz essas ondas, apresentando-as em ordem cronológica reversa. Isso é, iniciando na terceira e indo em direção à primeira. O efeito causado no leitor que lê os contos em ordem é uma espécie de túnel do tempo da ficção científica brasileira. Isso nos permite observar as mudanças que vêm ocorrendo na produção textual dentro do gênero.
As mudanças mais expressivas são a quantidade de autoras e autores escrevendo ficção científica e a diversificação de temas abordados. Por exemplo, a primeira onda traz apenas cinco contos, sendo apenas um deles (A Ficcionista, uma narrativa sobre inteligências artificiais e o poder da memória), escrito por uma mulher: Dinah Silveira de Queiroz. Um dos contos, O Elo Perdido, é de autoria de Jeronymo Monteiro, considerado o pai da ficção científica brasileira.
A segunda onda mostra uma explosão temática nas narrativas. Os subgêneros que, na introdução do livro, aparecem hermeticamente classificados numa tabela, começam a se misturar, gerando obras muito originais como Acúmulo de Skinnot em Megamerc, de Ivan Carlos Regina, que apresenta uma sociedade consumida por um imenso shopping center. Ou Visitante, de Carlos Orsi, que começa seguindo padrões de histórias pós-apocalípticas de alienígenas, apenas para dar uma volta e trazer elementos de histórias fantásticas. Essa mistura de gêneros é conhecida como new weird.
Nessa segunda onda, novamente, apenas uma autora chega a ser mencionada: Finisia Fideli, com suas histórias de visitas extraterrestres (Estrela Marinha no Céu) e de realidades paralelas (As Múltiplas Existências de Áries).
A terceira onda, por sua vez, mostra o estado atual da ficção científica brasileira, com uma explosão do reconhecimento de autoras e de novas experimentações das formas narrativas. Isso faz com que o presente talvez seja a melhor época para a produção nacional.
Além do Invisível, de Cristina Lantis, por exemplo, é uma belíssima história de amor e de realidade virtual, explorando discussões de gênero de forma muito mais bela e contundente do que, por exemplo, a quinta temporada de Black Mirror conseguiu fazer. A Última Árvore, de Luiz Bras, é uma narrativa sarcástica, com um humor corrosivo, que critica ao mesmo tempo as mudanças climáticas e a desigualdade social.
Além disso, a análise das ondas também mostra como se diversificaram as formas de publicação do gênero. Enquanto a literatura da primeira e da segunda onda era amplamente difundida através de livros físicos, edições do autor etc., a virada do século XXI e o advento da internet fizeram aparecer novas revistas especializadas na literatura especulativa, como as revistas Trasgo e Mafagafo, e permitiram a publicação em blogs e e-books. Isso deu vida nova (e trouxe caras novas) à ficção científica brasileira, que, como os exemplos que temos reunidos em Fractais Tropicais mostram, é tão diversa e rica quanto qualquer outro gênero da literatura brasileira.
Essa é uma coletânea de grande importância para o momento atual, em que as expressões artísticas nacionais estão sendo desvalorizadas em detrimento de produções estrangeiras. Assim como uma máquina que permite enxergar outras dimensões, Fractais Tropicais traz aos leitores incautos uma nova perspectiva sobre a literatura produzida em nosso país, mostrando todo um mundo vivo e pulsante de expressão e imaginação. Vale à pena a leitura.
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Ivan Nery Cardoso é escritor e tradutor, autor da coletânea de contos Cães noturnos, em processo de publicação. [ Resenha publicada originalmente no portal Porco Espinho. ]