Farofa high-tech com pimenta

Sonia Nabarrete
Desconcertos Editora
100 páginas
Lançado em 2022

Esse é um romance que mistura futurismo, humor ácido, erotismo e principalmente crítica social. Desde a sua estreia, com o romance Abusada, pela editora Feminas, Sonia Nabarrete é reconhecida por sua escrita marcada pelo erotismo do ponto de vista feminino e feminista, com altas doses de irreverência e sátira.

Diferentemente dos livros de ficção científica que eu costumo ler – em geral, space operas –, em que há muita ação e batalhas entre heróis-heroínas e vilões-vilãs, em Farofa high-tech com pimenta prevalecem a crise de identidade, o humor ácido e o erotismo. Digamos que essas também são armas numa batalha íntima, numa aventura existencial. A trama se passa no futuro, mas num futuro brasileiro bem tropical, regado a sexo, futebol, cerveja e muita farofa com pimenta: as paixões nacionais.

O romance é dividido em duas partes: I – Gol Contra e II – Tudo evoluiu, menos nós. Nesse futuro “além da imaginação”, a ciência e a tecnologia fizeram muitos progressos, incentivadas principalmente pelos ricaços corruptos, misóginos, racistas, xenófobos e até pelo governo. Dessa forma, foi criada a Para Sempre, uma empresa brasuca que faz transplantes cerebrais, permitindo, a quem puder pagar, viver quase que “para sempre”.

Detalhe: em 2154, o Brasil enfrenta novamente a Alemanha na Copa do Mundo, e é claro que a população ainda não esqueceu a derrota vergonhosa de 2014, o famoso sete a um.

Os problemas começam na tal empresa Para Sempre, especializada em transplante de cérebros. Essa empresa é a única a não dispensar os funcionários para assistir ao jogo, então uma tela gigante é instalada nas dependências da instituição. Assim tem início a tragicomédia: as equipes cirúrgicas, distraídas com o jogo, acabam cometendo erros crassos. No final, há um troca-troca equivocado de cérebros.

O humor da autora é surpreendentemente corrosivo, nessa que é a parte mais engraçada e erótica do livro. Os personagens, apesar do erro da troca dos corpos, vivem experiências incríveis e acabam redescobrindo a própria sexualidade e também a do outro.

Alguns exemplos: o cérebro de Roberto, que traía a mulher, Betânia, com a amante, Teresa, graças ao erro cirúrgico vai parar no corpo da amante. O cérebro de Enzo, um homem branco, rico e racista, vai parar no corpo de um homem negro e pobre, e acaba perdendo tudo e todos por causa de sua nova cor, odiando virar um simples objeto sexual de mulheres ricas e curiosas em conhecer um corpo negro e bem dotado. Há também as antigas amigas que se apaixonam loucamente, como no caso da Cristina, que ficou com o corpo de um homem, e se revela pra amiga Suzana, apresentando-se como Cristiano. Há ainda a mulher feia que, na troca, se torna um mulherão, mas depois dessa mudança os homens não a satisfazem como antes, quando ainda era uma baranga, então ela quer voltar a ser um pouco menos bonita – ironia do destino?

Todas essas inversões mostram como é delirante e assustador habitar um corpo estranho, estar na pele de outro ser humano, e nos fazem refletir sobre como a vida nunca está sob controle.

Me empolguei com a possibilidade de ser outra e me diverti com algumas situações constrangedoras, mas, pensando bem, tenho certeza de que não gostaria que isso acontecesse comigo… nem no presente nem no futuro. De tudo o que rola no romance, eu ainda prefiro ficar apenas com as reflexões que a leitura me provocou.

A classe mais baixa da pirâmide e até os excluídos continuam se ferrando nessa sociedade pseudo-perfeita futurista. E agora a máquina capitalista – o vilão sem caráter – faz os pobres mutilarem o próprio corpo, para desvalorizar a mercadoria e fugir da máfia que negocia com corpos sadios e belos. A fim de conseguir novos corpos, a empresa começa a medicar pessoas saudáveis, forçando-as a desenvolver transtornos psiquiátricos. Desse modo, a Para Sempre pode descaradamente, sem ética ou culpa, usurpar muitos corpos.

Percebemos então que a tecnologia é incrível, mas é pra poucos… bem poucos. Só para brancos e ricos: os privilegiados de sempre.

A certa altura do livro, a autora conclui que tudo evolui, menos o ser humano. Sonia faz um resumo de todo o conflito através dos próprios personagens, que se reúnem numa sessão de terapia de grupo, com a psicóloga Amanda. Participam as pessoas que sofreram com o erro da Para Sempre.

Deixo aqui um enigma: por que só a classe mais rica é acometida por uma doença fatal, a DM (que mata em apenas um ano), e precisa dos transplantes? Por que só os corpos pobres servem de receptores?! É claro que eu não vou contar, caro leitor. Você terá que descobrir sozinho, a partir das investigações do jornalista Robson do Vale.

Os personagens sacaneados com a troca de corpo estão tentando se adaptar e criar soluções para toda a confusão provocada pela famosa partida de futebol. Outros estão com a consciência pesada por terem adquirido um novo corpo, muitas vezes por meios ilícitos. Outros estão resignados, e outros, inconformados, esperando que a Para Sempre providencie uma cirurgia reparadora. Como a autora diz: “Vida que segue.”

Não deixem de ler esta narrativa erótica, caótica, raivosa e com humor espinafrado. Um ótimo exemplo de ficção científica brasileira de sexo e humor.

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Tereza Yamashita é ilustradora, designer e escritora, autora da coletânea de contos mundOmissíssimo.