Coleção Stelo Binara

Coleção Stelo Binara
Artur Matuck
Kadmonvort, Habitante do Terceiro Planeta (volume 1)
Ataris Vort no Planeta Megga (volume 2)
Iompostioma Eksperimento de Criogenia (volume 3)
Editora Escuta
72 páginas, cada volume Lançada em 2014

  • Quase desconhecida até mesmo entre os escritores brasileiros de ficção científica, a Coleção Stelo Binara, de Artur Matuck, é uma obra desafiadora, insólita, totalmente fora da curva. Ora em versos ora em prosa, as peças curtas que compõem os três volumes convidam os leitores a uma jornada fantástica, cheia de referências míticas, místicas e científicas. Assim que eu conseguir me recompor dessa experiência de altíssimo impacto estético, publicarei no blogue uma breve resenha da trilogia. Por ora, apreciem o prefácio de Artur Matuck para Kadmonvort, Habitante do Terceiro Planeta (volume 1 da coleção). E corram atrás dos três volumes, na Estante Virtual.

P r e f á c i o

Pressinto que, de certa forma, todos os textos que compõem esta coleção vêm de experiências mediúnicas, talvez espirituais, do contato com outras dimensões da realidade. Essas narrativas não seriam, portanto, apenas ficcionais; representam, ao contrário, um registro documental se aceitarmos uma expansão para além do físico do conceito de realidade. Elas revelariam uma dimensão do ser-mundo que muitos de nós experienciam mesmo sem consciência imediata. Imagino que não apenas recebi os relatos, mas vivenciei as cenas, encontrei personagens e vivenciei lugares do imaginal.

Kadmonvort, o poema que abre o volume, foi redigido em 1983 para apresentar uma síntese de minha obra de ficção científica poética. Kadmon vem de Adam Kadmon, do hebraico, da tradição judaica, significando o Homem Primordial. Ataris Vort é meu alter-ego no universo da ficção científica. Nesta palavra única se juntam as duas esferas, e Kadmonvort surge como um personagem de um passado mitológico, projetado em um futuro imaginário, sugerindo uma identidade própria, vivenciando um tempo em recírculo.

Na medida em que a escrita se instaurava, uma certa pulsão escritural fez com que o texto se distanciasse de seu projeto original. Tornou-se também uma celebração do poder esotérico do ritual, do elemento fogo e da língua estrangeira.

A frase “o temor da magia ou o terror diante da ciência institucional” sugere uma possível direção interpretativa. A expressão implicaria uma indagação epistemológica sobre os métodos de conhecer e intervir na realidade. Este poema, bem como toda a obra poético-literária que produzi, inclina-se para a denúncia da ciência pretensamente racional, mas que não vacila em controlar e dominar animais e homens em sacrifícios muitas vezes hediondos.

Kadmonvort, por outro lado, sugere que métodos mágicos e ritualísticos podem trazer conhecimento, operar mudanças e instituir positividades de maneira tão ou mais eficiente do que o fazem a ciência e a tecnologia contemporâneas. Uma proposição de caráter mágico, atualizada por meio de ritos com o fogo e a luz, mas especialmente através de palavras recitadas, poderia produzir consciência espiritual, conexão com o sagrado ou energia transformadora. O próprio poema seria ele mesmo uma forma de celebração ritual de um projeto estético-político de recriação de realidades.

Alpha Persona, cuja primeira versão data de 1976, é um dos textos mais antigos desta coleção. O poema se inicia com a palavra célula-eu, e busca, de certo modo, revelar o surgimento do ser num determinado planeta, investigar como uma célula de consciência se relaciona com o espaço planetário, com energias visíveis e invisíveis que povoam as paisagens; como a mente se estrutura quando começa a habitar um corpo e a conhecer seu ambiente.

A reflexão se direciona também para a linguagem. O poema introduz essa ideia-chave de que o ser humano, quando realiza uma viagem espacial, estaria também realizando uma viagem linguística. Na medida em que se distancia da Terra e de seus semelhantes, suas palavras vão perdendo o sentido – “Enquanto se afasta de seu lugar nativo, Alpha Personagem, navegante solitário do universo, vê esmorecer sua memória, sua linguagem desmorona…”.

O texto termina com doze palavras isoladas numa forma sintática arquitetural, propositando a necessidade de uma sólida estrutura para a sustentação da célula-eu, seja num planeta ou numa trajetória.

O poema Ritual de Transmutação descreve uma cena que se repetia espontaneamente em minha mente durante a década de 1990. Era uma visão de uma cidade muito antiga. Eu era um ancião, caminhava muito até chegar diante da porta de uma casa onde havia uma inscrição, como muitas casas judias possuem. A inscrição provavelmente representa a mezuzá, um pergaminho com textos bíblicos, guardado num estojo e colocado no lado direito das portas das moradias de judeus. A palavra mezuzá significa umbral, em hebraico.

Durante a prática da reversão mnemônica, decido abrir a porta daquela habitação e vivenciar o que se encontrava além. Surge uma escada que subo lentamente, e me deparo com uma biblioteca localizada no interior de uma cúpula circular de vidro. A cena que vivenciei tornou-se este poema, redigido em 1998. Ao reler, sinto uma certa irradiação permeando meu espírito. Um pacto é instituído entre este senhor, que sou eu, que no final da vida contempla sua biblioteca, ciente de sua morte próxima, e uma entidade angelical, mallach, Adam Kadmon. O ancião se propõe a fazer um pedido a este personagem espiritual para que, em sua próxima encarnação, possa ainda ter acesso ao conhecimento adquirido nesta sua existência.

Ao rever o texto, em 2013, surgiu a proposta de ele incorporar o conceito de literatura interlinguística. Deste modo, palavras da língua hebraica foram adicionadas ao texto original em português.

O poema em prosa Terra Emergida surgiu da reunião de três textos redigidos em épocas distintas: Jaguar em Chichén Itzá, de 2004, Mensageiro em Terra Emergida, de 2010, e Memória de um Sacrifício, de 2012. Os três textos têm como lugar-comum a sociedade pré-colombiana do México, a cultura dos astecas e dos maias, e derivam de minhas visitas, especialmente à península de Yucatán.

Na primeira viagem, em 1985, pude conhecer Chichén Itzá, a cidade preservada e reconstruída, onde habitavam os sacerdotes astrônomos maias. Na segunda visita, em 2010, conheci os cenotes, lagos profundos, e as grutas interligadas por canais subterrâneos, que os maias identificaram com o submundo. Em algum momento devo ter decidido que buscaria pesquisar a cultura da península de Yucatán por meios não tradicionais, pela intuição, pela literatura imaginativa.

O primeiro poema, Jaguar em  Chichén Itzá, de 2004, também resultou de uma introvisão de eventos remotos. Eu era um foragido, deveria caminhar sozinho através de matas e regiões desabitadas, em busca de uma nova vida, de uma reconexão com uma comunidade, com o mundo, comigo mesmo. Nesse percurso, acabo conhecendo uma jaguar fêmea e estabelecendo uma relação interespécies.

O segundo poema, Memória de um Sacrifício, surgiu de uma reportagem da Revista de Antropologia do México, que relatava os sacrifícios que se faziam com crianças e jovens em benefício de Tlaloc, o deus maia da chuva. Os maias acreditavam que os sacrifícios humanos eram necessários para que as águas mantidas pelos deuses, no interior das montanhas, fossem transformadas em chuvas necessárias para o crescimento do milho e sustento das comunidades. Os adultos conduziam então os mais jovens num percurso ao longo do qual estes choravam por seu próprio destino.

O terceiro e último texto, Mensageiro em Terra Emergida, surgiu espontaneamente, durante uma nítida visão em 2010, numa noite na península. No momento em que me tornei consciente da aparição, me propus a escrever detalhando a aproximação de um sacerdote vestindo um traje verde e se materializando diante de mim. Ele se dirige a mim para relatar que os antigos habitantes, após terem se desligado dos corpos materiais, estariam, agora, habitando os mundos subterrâneos, mas se encontravam ansiosos por subirem e encontrarem a luz e o calor do sol na superfície. Apenas o sacerdote podia ascender para se comunicar.

Na revisão textual, decidi que a tradição cultural referida no poema deveria também estar presente no nível das palavras, seguindo a proposição de uma literatura interlinguística. Pesquisei um dicionário náuatle e localizei as palavras, mais relevantes para o poema, do vocabulário falado pelos maias na península de Yucatán. Sinto-me sempre motivado a procurar novas palavras que possam sugerir de modo preciso a experiência que tive ou imaginei como um companheiro de uma jaguar fêmea, como jovem sacrificado ao deus Tlaloc ou como interlocutor de um sacerdote ou divindade, que fala em nome de espíritos que buscam alcançar a superfície em Yucatán.

Esta proposição estético-literária na forma de um impulso escritural para uma literatura interlinguística tem surgido com muita intensidade desde que comecei a escrever, também em inglês, nos Estados Unidos, no final da década de 1970. No Brasil, a partir da década de 1980, os textos começaram a extrapolar os limites da língua portuguesa, revelando uma necessidade de experimentação intercultural.

A mistura entre idiomas pode também representar uma metáfora da intersecção entre realidades. Cada língua implica um instrumento de instauração de uma realidade particular para seus falantes. Por isso, uma literatura interlinguística indicaria uma possível literatura interdimensional.

Colapso Solar narra a paisagem subjetiva de uma astrofísica despertada em seu laboratório pelo anúncio da morte do Sol. Os computadores, atuando autonomamente, captam informações, realizam cálculos e emitem uma mensagem de alerta: “O Sol está morrendo!”

Nesta cena, a comunicação interlinguística ocorre entre máquinas e seres humanos. A mensagem conduz a personagem a uma crise existencial, levantando uma questão sobre o espaço possível da subjetividade na ciência. Normalmente, os cientistas, mesmo que por vezes trabalhando sozinhos, têm um compromisso de se manterem objetivos ao raciocinarem com os dados registrados por seus instrumentos. Neste caso, no entanto, a personagem cientista sente-se tocada por um fenômeno cósmico e deixa transbordar sua subjetividade e poeticidade. Há ainda a questão das distâncias escalares na medida do tempo. O Sol desaparece em uma temporalidade macroescalar muito maior do que aquela do ser humano. Instaura-se, no campo ficcional, uma conexão pelo intertempo.

As cenas no laboratório, as interações entre a inteligência artificial e a pesquisadora sensibilizada pelo supradimensional, são observadas por um escritor e um interlocutor que o indaga sobre a personagem que criou. A cena institui uma relação entre o imaginário e a instância do autor, que se torna também um personagem ficcional.

Esses textos me trazem uma ideia poética de sonho, de viagem cósmica, de conjunção de dimensões, de transição entre o micro e o macrocosmo. Regozijo-me com a possibilidade de vivenciar uma paisagem onírica, dimensões distantes no tempo ou no espaço, mas intensamente relevantes para nossa época.

Artur Matuck [Ataris Verkisto]
São Paulo, redigido em janeiro de 2014, revisado em Julho de 2022.

Artur Matuck é escritor, artista plástico, professor, pesquisador, diretor de vídeo, performer, produtor de eventos de telearte e, mais recentemente, filósofo da comunicação contemporânea e organizador de simpósios internacionais.