Movimento 78

Flávio Izhaki
Editora Companhia das Letras
184 páginas
Lançado em 2022

O que surpreende neste mais recente lançamento de Flávio Izhaki é o invejável virtuosismo literário com que soube conduzir as vozes de diferentes gerações do seu protagonista com saltos temporais entre passado, presente e futuro – não necessariamente nesta ordem – em um convincente e consistente romance distópico no qual aborda um tema já clássico no gênero: as consequências da nossa crescente dependência tecnológica e do uso indiscriminado da inteligência artificial. Apesar da ambiciosa estrutura não linear no tempo e da diversidade estilística, o autor consegue manter o ritmo narrativo e o interesse do leitor do início até o final.

Sendo assim, cada capítulo é imprevisível, tanto na forma quanto no conteúdo, e podemos presenciar um acirrado debate eleitoral entre Seiji Kubo – talvez o último candidato humano da História – e Thomas Beethoven, um holograma gerado por inteligência artificial, no final do século XXI; acompanhar os detalhes de uma série de exames médicos que o seu pai, em 2019, é forçado a realizar pela empresa na qual trabalhava ou, até mesmo, nos descobrir escondidos em um armário, junto a um antepassado de Kubo ainda mais distante, perseguido pelo exército russo na Polônia, durante a Segunda Guerra Mundial, para citar somente algumas passagens.

No presente, Kubo (pai) é chantageado pela empresa na qual trabalha para participar de um tratamento experimental que pretende combater um câncer ainda não existente, mas com as células da doença já potencialmente espalhadas pelo seu corpo, segundo o resultado de um exame de sangue protocolar. Ele recebe do médico então um prospecto com a descrição “limpa, ascética, infantil” do novo tratamento patenteado que promete agir contra as células doentes antes que elas atinjam o seu poder de destruição, um procedimento “sem médicos, apenas computadores abrindo, manipulando, consertando seu corpo ainda não doente”.

Sentar à mesma mesa de sempre nem foi tão mal assim. Ele precisava da ideia de um dia normal e não dos novos vizinhos de andar inquirindo sobre a presença dele ali em uma mesa com vista. Mas Kubo sabia que aquele não era um dia normal. E sabia de outras coisas também, a mais importante delas sendo que no futuro estaria propenso a ter um câncer, oitenta e dois por cento propenso. E o que não sabia era o que fazer com aquela informação, como dividir aquela notícia com a mulher, como dar comida para o bebê que não era mais bebê sabendo agora o que não sabia dois dias antes. / Havia também a questão da empresa, uma clara chantagem em usá-lo como cobaia de um serviço que ainda estavam aprimorando, mas que vendiam em um prospecto como uma certeza. Certeza, essa palavrinha. E o serviço era colocar-se à disposição para um tratamento experimental, conduzido por computadores, que manipulariam seu corpo com ele apagado para consertá-lo. Consertá-lo, sim, ele pensou, a palavra exata para eles é essa. Não curá-lo, mas consertá-lo de um problema. Só que ele ainda não tinha o problema, e nem confiava cem por cento, nem mesmo oitenta e dois por cento, na eficácia do que aquele prospecto vendia como certeza. (página 37)

O Go é o jogo de tabuleiro mais antigo do mundo, rival do xadrez em termos de cálculo e estratégia. Gary Kasparov foi o primeiro Grande Mestre a perder uma partida de xadrez para um computador, o Deep Blue da IBM, em 1997. No romance, o capítulo A última vitória é inspirado no documentário AlphaGo, de Greg Kohs, sobre um match de cinco partidas de Go das quais o convidado, o campeão sul-coreano Lee Sedol, venceu apenas a quarta da série contra o programa desenvolvido pela Google DeepMind. O movimento de número 78 é decisivo nesta única e última partida vencida por um jogador humano contra uma inteligência artificial.

De fato, do movimento 78 em diante, a máquina passou a jogar de modo errático, se é que é possível usar essa expressão para as ações de uma inteligência artificial. Mesmo Lee Sedol logo percebe e ainda tenta brigar consigo mesmo em sua dúvida. Os movimentos passam a ser tão inexplicáveis que o sul-coreano vê que a vitória se aproxima, mas ainda se questiona se perdeu algo pelo caminho e vai ser derrubado. Ele segue jogando e a máquina faz um movimento ainda mais estranho, tão diferente que Sedol olha para o tabuleiro, depois para a tela, para ter certeza de que não foi o engenheiro que colocou a peça no lugar errado. Mas não foi. A máquina simplesmente sabe que perdeu e tenta, desesperadamente, fazer jogadas aleatórias para forçar um erro maior de desconcentração de Sedol. Mas o sul-coreano não erra e, poucas jogadas depois, a máquina desiste. É a primeira vitória humana sobre uma inteligência artificial num jogo de Go. E seria a última vez que um ser humano conseguiria tal feito. (página 85)

O forte capítulo A Lâmina é praticamente independente do romance e poderia ter sido publicado sem prejuízo como um conto. O candidato humano em debate contra o representante da inteligência artificial, no final do século XXI, conta como o seu tataravô, polonês, sobreviveu à Segunda Guerra Mundial, utilizando o fato como um argumento de que a máquina não tem passado ou família: “Mas eu pergunto, caro candidato Beethoven, de nome tão célebre, por sinal, qual é o #mitofundador da sua família? Será que pode contar alguma coisa? De repente quem te programou… Ou quando nasceu – e fez o sinal de aspas com as mãos. – O que você faz quando não está aqui? Para onde vai, com quem conversa? Como conversa? O que acontecerá com você quando perder essa eleição? Será desligado?”

Poderia ter morrido, pensa. O coração bate acelerado, as veias do pescoço pulsam nervosas. Ele está tão tenso que teme desfalecer, mas apenas anda de lá para cá dentro de um cubículo escuro que não tem um metro de largura ou comprimento. De fato não anda, quica. Escuta o barulho de uma porta sendo esmurrada. Vão achá-lo. Uma voz em russo berra qualquer coisa. Ele não entende quase nada de russo, mas sabe reconhecer a língua. A mulher responde em polonês, baixinho. É a língua dele, mas os sons não formam palavras, apenas murmúrio. O russo, não. É um tom grave e mesmo sem entender ele sabe o que é: estão atrás dele, viram-no entrar ali. A voz aumenta de tom. Ele não quica mais, congelado, o único som que escuta é o do coração batendo forte demais, tum-tum, tum-tum, vibrando na orelha. Ele está num quarto, lembra-se apenas disso, de  quando entrou no apartamento de andar térreo e a mulher disse “se esconda ali”, e ali era apenas uma cama de viúva ou um armário. Escolheu o armário. A cama é arrastada. Vai ser agora. Vão achá-lo. Mas de repente mais um berro em russo e o silêncio posterior. (página 140)

Um livro recomendado e que já tem lugar garantido entre os melhores lançamentos do ano. Deixo com vocês a introdução de Antônio Xerxenesky, outro grande prosador contemporâneo, que conseguiu resumir muito bem o tema central do romance: “O que Izhaki faz, com precisão narrativa e pluralidade estilística, é nos recordar que a tecnologia nunca é neutra, por mais que seja vendida como tal. Temos como pensar criticamente essa locomotiva do progresso quando tantas partes de nossa vida já se fundiram com o algoritmo das grandes empresas?”

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Alexandre Kovacs é um engenheiro que adora ler e acumular livros. Suas resenhas podem ser conferidas no Mundo de K.