O Teorema das Letras

André Carneiro
Editora Devir
168 páginas
Lançado em 2016

Este é o quinto livro de contos publicado pelo autor, o único de forma póstuma, já que André Carneiro faleceu em novembro de 2014.

Assim, a coletânea reúne a parte final dos seus escritos em prosa, o que mostra a vitalidade e longevidade de sua criação literária, iniciada em 1949 com o volume de poemas Ângulo e face. Também em termos de ficção científica, é o autor brasileiro que escreveu por mais tempo, já que seu primeiro livro do gênero, a coletânea Diário da nave perdida, é de 1963.

Mas O Teorema das Letras é mais do que o encerramento de uma carreira longa e reconhecida no campo da FC – no Brasil e no exterior – e na poesia. Suas cinco histórias exploram de forma arrojada, surpreendente e mesmo incômoda questões relativas à sempre problemática condição humana: a solidão, a dificuldade de conexão com o outro, a necessidade de expressar a liberdade como forma de afirmação de uma humanidade mais autêntica. Ainda mais se confrontada com súbitas e desnorteadoras mudanças sociais a partir de inovações tecnológicas ou a partir de regimes políticos não democráticos. Esta última questão foi particularmente aguda na vida de Carneiro, um libertário humanista em meio a uma sociedade tão conservadora como a brasileira.

Como bem observa Ramiro Giroldo no posfácio, O Teorema das Letras segue a tendência de seu livro anterior, a enorme coletânea de vinte e sete contos Confissões do inexplicável (2007), “com contos onde se intensificam a indefinição entre o real e o imaginário e a incerteza quanto ao narrado. A narrativa pode se reconstruir e se fazer outra de um momento a outro, abalando a certeza de que a mera observação dos fatos possa levar à compreensão deles – os próprios sentidos a decodificar o mundo ao redor são indignos de confiança (…), estamos em um terreno de incertezas e paradoxos.”

Que fique claro, portanto, que não estamos diante de uma prosa que prima pela convencionalidade, com respostas facilitadas para o leitor. Quem conhece André Carneiro de outras obras já parte deste princípio, mas mesmo assim ele não deixa de soar algo insólito nas nuances que vão se insinuando a cada frase de seus contos. Assim, exige-se do leitor uma postura aberta ao novo e ao improvável, uma expectativa de estranhamento sempre a postos. Porém, longe de tornar a leitura difícil, isso é um estímulo, um desafio intelectual frente às situações incertas e ambíguas apresentadas, muitas vezes, em cada história.

(…)

Como já disse, o livro se encerra com o pósfácio de Ramiro Giroldo, professor de literatura brasileira na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS). Em André Carneiro entre os quânticos da incerteza, ele, que também defendeu um mestrado sobre a distopia na obra de Carneiro, na verdade oferece bem mais do que um texto de encerramento do livro. Fazendo um balanço cronológico e, por meio dele, dos temas e características da obra de Carneiro, Giroldo realiza um trabalho de análise literária não menos que notável. Pelo conhecimento, pela sutileza de suas análises e pela contextualização da condição do autor frente à ficção científica, à poesia e à literatura brasileira. É, desde já, um dos trabalhos mais completos sobre um autor de ficção científica escrito em língua portuguesa: uma referência para quem for estudar, principalmente, a vida e a obra de André Carneiro e, por extensão, a ficção científica brasileira.

Sabe-se que na última década de sua vida Carneiro sofreu com problemas de saúde, especialmente na visão. Com glaucoma, tinha apenas dez por cento restantes e, mesmo assim, e por meio de aparelhos que amplificavam sua leitura, não esmoreceu. Continuou escrevendo, e com qualidade, e uma liberdade temática talvez ainda mais ousada. Isso só valoriza ainda mais O Teorema das Letras, uma obra que inspira e desafia, como poucas em nossa FC, a inteligência e a imaginação do leitor.

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Marcello Simão Branco é pesquisador de ficção científica e coeditor do Anuário Brasileiro de Literatura Fantástica.

[Trecho da resenha publicada originalmente no Almanaque de Arte Fantástica Brasileira. Acesse a resenha completa clicando AQUI. ]