Distrito Federal

Luiz Bras
Patuá Editora
280 páginas
Lançado em 2014

Misto de romance de suspense com revistas de ficção científica, Distrito Federal não cumpre com as exigências de nenhum dos gêneros, e a rapsódia indica apenas que o livro, apesar de poder ser classificado com a pecha de romance, consegue, sem grandes alardes, atingir aquilo que os modernos atrasados defendem como inovação e os concursos literários como economia de recursos: o hibridismo das formas. De qualquer modo, seguiremos conformados à afirmação de que se trata de um romance e, mais que isso: é um livro que surge na hora certa, no lugar certo, e acerta todos os alvos a que se propõe. E acerta longe e na mosca, como em uma escola de tiro-ao-alvo para profetas.

Logo, DF é desde já um – clássico. E se nos adiantamos em afirmar sua importância (esperamos ser os primeiros a tê-lo feito) é para que quando desembarcarem na terra, no intuito de estudar nossa civilização depois do apocalipse nuclear, os antropólogos marcianos notem que, pelo menos, algumas vozes apaixonadas se levantaram a favor desse romance quase sumariamente ignorado quando de seu lançamento (2014). O que já era de se esperar, afinal de contas, é característica dos covardes não ler nem falar sobre os corajosos. Esse, afinal, é o acordo entre as ovelhas: “se não falarmos do lobo, será como se o lobo não existisse”. Mas o lobo existe, assim como existiram resenhas que trataram sobre o livro com paixão e propriedade. O que estamos dizendo aqui é que em torno de DF não houve todo o barulho, todo o estardalhaço, que a obra merecia. Mas sobre isso trataremos mais adiante.

Por ora, a pergunta formulada por Gary Snyder: “é culpa do coiote que exista morte no mundo?” Se a resposta for não, sapecamos outra: e que lugar melhor que Brasília para assassinos em série de políticos corruptos laborarem? Nada mais óbvio que essa ideia que, de tão óbvia, ficamos indagando por que ninguém pensou nisso antes. Claro que alguém pensou, faltando apenas as glândulas testiculares necessárias para dar livre curso a essa imaginação maravilhosa. O fato é que corrupção gera violência e, em uma sociedade corrupta e violenta até o talo, o assassinato de políticos corruptos se torna uma das belas-artes sonhadas por De Quincey. Então podemos dizer que o autor de DF é um De Quincey leitor de Philip K Dick?

Sim, mas vamos devagar, pois essa procissão é a pé.

Longe dos falsos dramas da consciência dos bem-intencionados, a violência gráfica descrita em DF é RPG puro: precisa, imagética, colorida. No livro, aliás, Distrito Federal é também um jogo de RPG. Jogos dentro do jogo, portanto, como uma cebola lisérgica em 3D. O livro nos presenteia com o acesso dirigido à mente de um assassino e o jogral com o eco de vozes narrativas (a agência de notícias, a brain-net) é apenas um dos labirintos desse jogo. O centro é a voz de uma narradora que se dirige a um dos personagens e que depois se dilui na fluidez do discurso em segunda pessoa (algo pouco usual na ficção, onde superabundam os discursos em primeira e terceira) até se estilhaçar no decorrer da leitura, sem com isso confundir o leitor. É porque o tom permanece igual em praticamente todo o livro: frases curtas, secas, carregadas de objetividade com volts de lirismo em certas partes. É que o discurso em segunda pessoa (dificílimo de ser manejado) tem essa função de colocar o leitor dentro do livro, dando a impressão de que a voz se dirige diretamente para ele.

A democracia é um jogo tanto quanto a literatura. O assassino caça corruptos pelo cheiro porque eles fedem (alguém seria capaz de discordar?) e quando o bom senso do leitor implora que se aguarde a lei vir punir os safados, logo vem à lembrança do cidadão que lê que isso não acontecerá, pois os gângsteres profissionais criaram as leis para proteger a si mesmos. Assim, o discurso que defende a matança logo ganha nossa adesão por cinismo: concordamos com ele – e nos assustamos por concordarmos, o que é um bom sinal, e é o único.

Além desse assassino, outros personagens míticos acompanham o banho de sangue: o curupira e o saci (que incorporam nas pessoas e saem matando os facínoras de gravata), os exus, as cucas e os oguns, são apenas alguns exemplos de personagens do folclore tradicional ressuscitados em DF para participar do pesadelo de um futuro que é agora. A metáfora é a das forças da Natureza se levantando contra o avanço do capitalismo corrupto que a dilapida e destrói, mas é mais que isso. Conversando sobre o livro com a poeta Adriane Garcia, ela me alertou para o fato de que DF, na verdade, é um livro que nos devolve um país na ficção. Nesse sentido, trata-se de um romance histórico, de identificação nacional, a exemplo do premonitório Caramuru, escrito pelo agostiniano José de Santa Rita Durão, ou do Iracema, de José de Alencar, com a diferença de que em DF os nativos são ciborgues e andam bem mais armados.

DF é um Mad Max com boitatás.

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Tadeu Sarmento é escritor, autor de Associação Robert Walser para sósias anônimos (Prêmio Pernambuco de Literatura), Um carro capota na lua (Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura) e O cometa é um sol que não deu certo (Prêmio Barco a Vapor), entre outros.

[ Trecho da resenha publicada originalmente na revista Mallarmargens. Acesse a resenha completa clicando AQUI. ]