A Rainha do Ignoto

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Emília Freitas
Editora da Unisc
430 páginas
Lançado em 1899

Publicado no final do século 19, A Rainha do Ignoto é considerado o primeiro romance de ficção científica escrito por uma autora no Brasil.

Muito mais do que uma narrativa sobre uma utopia feminista ou um romance psicológico − como foi tratado na época de sua publicação –, o livro é uma distopia cativante e muito bem elaborada por Emília Freitas. Após a leitura, fica ainda mais evidente a coragem e a perspicácia da autora em abordar, em seu ato ficcional, as mazelas preconceituosas e nefastas da sociedade patriarcal da época.

A história tem inicio na costa brasileira, quando um galante bacharel em direito vindo da capital pernambucana toma conhecimento de uma lenda local, sobre Funesta, uma misteriosa mulher que navega pelo rio Jaguaribe.

Na verdade, a lenda é um subterfúgio e um dos muitos disfarces da Rainha do Ignoto, que atende por outros codinomes dependendo do local onde é avistada ou reconhecida, em diversas regiões do país. Outro fator importante é que a Rainha não tem uma aparência definida. Cada observador que a contempla constrói para si uma imagem própria, devido ao efeito hipnótico que a presença dela produz.

É nesse momento que o jovem torna-se obcecado pela visão da Rainha e toma para si a missão de solucionar o mistério. Durante a investigação, ele tenta a todo custo contatá-la. Mas é impossível para ele adentar a Ilha do Nevoeiro, porque o local é protegido e imantado, sua entrada é secreta e invisível aos olhos mortais. Além do mais, nessa sociedade são recrutadas apenas mulheres escolhidas pela própria Rainha, após um sofrimento pungente.

Contudo, o jovem recebe a ajuda de uma moradora local, alguém que a própria Rainha escolhe para o seu Reino. Disfarçado e travestido de mulher − uma freira muda −, o jovem adentra a Ilha do Nevoeiro e fica maravilhado ao constatar que ali habita uma sociedade perfeita e justa.

Nessa utopia, que está muito à frente de seu tempo, a sociedade é autossuficiente e as Paladinas sob as ordens da Rainha exercem todas as funções administrativas e políticas. Na Ilha do Nevoeiro tudo funciona de forma colaborativa e isenta de conflitos.

Em contraponto, a autora inteligentemente utiliza os exemplos práticos e explícitos das atividades na Ilha do Nevoeiro como forma de contestação de todos os valores brutais, incapacitantes e injustos que a sociedade humana tende a repetir por séculos.

O final da narrativa é sombrio e contundente: nesse ponto a utopia se transforma numa distopia. Talvez essa seja a parte mais simbólica de todo o romance, em que a autora cearense propõe ao leitor um grito silencioso de clemência.

Aliás, cabe ressaltar que ignoto significa desconhecido ou aquilo que é ignorado. Logo, A Rainha do Ignoto aborda desde seu título questões muito mais intrínsecas do que se poderia supor à primeira vista.

Nas páginas finais, um leitor atento irá se deparar com a realidade perversa, fria, injusta e cruel das engrenagens sociais vigentes − que se arrastam por séculos e séculos, até quando?

Márcia Olivieri é ficcionista e ensaísta, autora de O portal de Capricórnio, entre outros livros.