Até que a brisa da manhã necrose teu sistema

Ricardo Celestino
Clube de Autores
208 páginas
Lançado em 2021

Antes de mergulhar na leitura, a primeira coisa que eu observo num conto, novela ou romance é a forma literária. Ao começar a ler Até que a brisa da manhã necrose teu sistema, levei um susto. A disposição do texto ora em linhas quebradas e desalinhadas, ora em parágrafos italizados (alguns longuíssimos), disposição típica da melhor poesia modernista, foi uma bem-vinda injeção de adrenalina. Fiquei com a curiosidade atiçada.

O autor foi bastante atrevido ao compor um romance inteiro de maneira profundamente transgressora. Com um agravante: estamos falando de um romance de ficção futurista, gênero que raramente aceita uma linguagem experimental. Bravo!

Logo nas primeiras páginas, ficou bem claro que a fratura das linhas e de certos parágrafos, mesclada com a prosa dos parágrafos italizados, não é gratuita, não é um maneirismo estilístico apenas pra parecer moderninho, na verdade essa estratégia visual reflete e intensifica a fratura discursiva da própria narrativa.

No plano narrativo, os labirintos-arabescos hipertrofiados do ciberbarroco potencializam o estranhamento da criatura ostranenie, cujos tentáculos transformam em arte tudo o que tocam (ao menos era nisso que acreditavam Viktor Chklovski e os formalistas russos). Bravíssimo!

Ricardo Celestino concebeu uma história potente, uma distopia tupinipunk criativa e agressiva. Sempre que leio um romance eu procuro identificar rapidinho a família literária a qual ele pertence. No plano do enredo sci-fi, um dos tios de Até que a brisa da manhã necrose teu sistema é certamente Santa Clara Poltergeist, a obra-prima de Fausto Fawcett. Outro parente próximo, quem sabe um primo, é Favelost, do mesmo autor.

Mas o primeiro romance de Ricardo Celestino extrapola o nicho sci-fi. Essa narrativa é um excelente espécime da melhor ficção brasileira experimental. Um bom leitor não sentirá a menor dificuldade em incluí-lo na restrita família dos transgressores, ao lado de Galáxias, de Haroldo de Campos, Catatau, de Paulo Leminski, A obscena senhora D, de Hilda Hilst, No coração dos boatos, de Uilcon Pereira, Panteros, de Decio Pignatari, e O peso do pássaro morto, de Aline Bei.

Isso significa que o romance de Ricardo Celestino não terá muitos leitores. Uma das leis da Teoria da Informação assegura que, quanto mais sofisticada uma obra de arte for, menos apreciadores ela terá. Mas tenho certeza de que os poucos leitores capacitados que aceitarem o desafio de atravessar Até que a brisa da manhã necrose teu sistema no final da jornada se sentirão profundamente recompensados.

O romancista criou um Complexo Comunitário assustador, típico dos filmes trash. O simples fato de os cidadãos se alimentarem de carne humana processada em açougues credenciados pelo Estado alternativo já diz tudo sobre essa horripilante sociedade futura.

O cotidiano no Orbe Norte já é dramático para os felizardos que receberam do governo a nova civilidade. Mas quando me dei conta de que o canibalismo se tornou prática comum no dia a dia dessa comunidade, de que a fonte da proteína consumida por esses indivíduos de terceira categoria é o corpo dos párias que não conseguiram a nova civilidade…  Karalho! Isso, sim, é levar a sério a divisa do cyberpunk: high tech, low life.

Na realidade narrativa, a tecnociência já tornou possível as inteligências artificiais e os devices orgânico-sintéticos. Todos os cidadãos são ciborgues, ou seja, seres humanos aperfeiçoados. No entanto, a miséria moral e política é tamanha, que nem mesmo a altíssima tecnologia conseguiu libertar os humanos de sua abjeta prisão social. Civilidade, sabedoria, filantropia e justiça simplesmente não existem, dentro e fora dos Orbes. Apesar de todo o progresso tecnocientífico, o homem continua sendo o lobo do homem (Thomas Hobbes) e o Estado continua detendo o monopólio da violência ilegítima (mais do que da violência legítima, como dizia Max Weber).

Durante a leitura do romance, eu anotei em meu diário: “O humano não controla a História (principal sintoma do cosmos). O humano é no máximo testemunha e ferramenta das ações dessa força maior, cega e ingovernável, sem causa final, que segue revolucionando sociedades e mundos. Uma força irresistível, totalmente indiferente à nossa vontade.”

Como evitar essa visão pessimista da História, diante dos descalabros políticos e sociais que estamos vivendo, em tempos de pandemia de covid-19? Não é à toa que nos últimos anos o gênero distopia voltou a ocupar os primeiros lugares nas listas de livros mais vendidos no Ocidente. A organização sociopolítica de Até que a brisa da manhã necrose teu sistema confirma e denuncia a verdade trágica de que o humano − lobo do humano −, mesmo provido das ferramentas mais sensacionais, não controla a História. Ele não é o sujeito, mas o vassalo da História.

O protagonista M4594 − rebatizado Mário Augusto da Silva − é uma típica marionete no jogo sociopolítico. Logo no início da narrativa, um agente de segurança − um milico-ianque − derruba-o com uma descarga elétrica, permitindo que um vírus danifique sua mente. A sucessão de infortúnios está apenas começando. Lutando dia após dia contra todo o tipo de condições adversas, esse anti-herói é um indivíduo menor do que o mundo, semelhante aos personagens alienados de Graciliano Ramos, em Vidas secas, e de outras obras dessa onda tão recorrente e necessária, batizada de literatura social brasileira, que reúne muitos pesos-pesados: o velho Graça, Érico Veríssimo, Antônio Callado, Paulo Lins, Luiz Ruffato, Ferréz e tantos outros.

Três inteligências artificiais também dividem o palco: Pátria Amada é o sistema nervoso central do Estado, mas não há conexão com esse banco de dados no Complexo Comunitário; Salvador Diógenes é uma matriz esotérica, centro de um culto religioso que ambiciona tomar o poder; e Mariga-O-Todo é uma IA descentralizada, manipuladora, terrorista, que hostiliza Salvador Diógenes e seu culto, e também busca derrubar o governo e o capitalismo. A interação caótica dessas criaturas sintéticas com Mário e os outros humanos-máquinas reproduz nos menores detalhes o caos geral de toda a sociedade. A vida no Orbe Norte − aparentemente em todo o país − é um circo de horrores tão grotesco, tão peçonhento, que nem mesmo as inteligências sintéticas conseguem escapar de seus tentáculos pegajosos.

O comportamento predatório dessas inteligências artificias deixou em mim uma impressão muito forte de desamparo e melancolia. Quer dizer que a selvageria da evolução biológica, a guerra sem fim das espécies vegetais e animais, ecoará também no universo eletrônico?

O milico-ianque é um personagem-fantasma, uma assombração ora onírica ora empírica que persegue e espanca Mário o romance inteiro. Como se um avatar de Freddy Krueger fosse convocado para celebrar em tom de paródia a hiperviolência mais sacana, mais sádica, na forma de um trauma incurável, no ritmo de um coturno etéreo chutando, chutando, sempre chutando.

Cada um a seu modo, os outros coadjuvantes − seu Carmo, Josias, Helena, Catarina, doutora Manuela, dona Silmara, a carniceira e seu assistente etc. − só atrapalham. Alguns são, sem querer, bem-intencionados miniantagonistas. A maioria tenta ajudar Mário a recobrar a sanidade roubada pelo vírus, mas tudo o que dizem e fazem acaba desaparecendo numa espiral fractal sem salvação. No inferno do Orbe Norte, todo e qualquer impulso de empatia e altruísmo se perde na realidade prismática de “um mundo exponencialmente fracassado” (que expressão verdadeira!).

Durante a leitura do romance, eu recorrentemente refleti sobre o conceito poético de grotesco, conforme a definição apresentada por Wolfgang Kayser em seu célebre estudo sobre o assunto.

Segundo o pesquisador alemão, o grotesco promove o mais absoluto estranhamento da realidade − “o mundo grotesco sempre causa a impressão de ser a imagem das coisas e dos seres vista pelo olhar da loucura” − e uma de suas principais ferramentas é a fusão dos reinos mineral, vegetal, animal e maquínico, fusão antinatural que sempre gera criaturas insólitas e assustadoras (veja, por exemplo, a escola surrealista).

Nas páginas de Até que a brisa da manhã necrose teu sistema, absolutamente tudo está contaminado pela angústia do grotesco, não apenas a mente danificada do homem-máquina Mário (“atinge-se o estranhamento pela união do heterogêneo”, diz Kayser). O romance inteiro é mais um exemplo perfeito do novo grotesco: o grotesco pós-humano, ciberbarroco, inaugurado no Brasil pelo Fausto Fawcett.

Jargão tecnofuturista: ciborgues quadrúpedes, redes algorítmicas inteligentes, implantes de leds no antebraço, vírus de memórias traumáticas, devices orgânico-sintéticos, drones-assistentes, experiências de média e alta imersão, upload mental, vida humana em nanoescala (nanoconsciência), matrizes-contratantes, centrais de gerenciamento sintético-orgânico, mosaicos fractais… No romance, a tecnociência aloprada é eficiente e verossímil.

O melhor momento dessa ficção demolidora? Há dezenas de melhores momentos. Difícil escolher um.

Todos os acontecimentos ao longo da narrativa expressam violência, em graus diferentes de intensidade. Mas em minha opinião o ponto alto do romance é o capítulo 7, em que a violência racionalista-capitalista atinge o grau máximo da escatologia literária. No Matadouro 45 (ótima referência ao Matadouro 5 do Vonnegut), situado no bairro de Clemência, o processo industrial de abate de seres humanos é limpo e eficiente: “nível cinco de humanização”. Esse capítulo me lembrou não só as práticas nazistas e stalinistas, mas também as melhores páginas − justamente as que narram as cenas mais abomináveis − de dois livros terríveis: Os cantos de Maldoror, de Lautréamont, e Almoço nu, de William Burroughs (uma das influências mais visíveis na obra de Fausto Fawcett).

Tão impactante quanto esse capítulo é o desenlace do romance, em que é narrada a transformação-redução do protagonista em milhares de nanorrobôs conectados em rede, que por sua vez serão injetados nos sashimis congelados da rede Salvador Diógenes, que por sua vez serão consumidos pela equipe gestora do Governo do Estado de São Paulo, permitindo que Mário finalmente saia do Complexo e volte à Capital. Putaquipariu. Humor bizarro de altíssima qualidade.

+ + +

Luiz Bras é ficcionista e ensaísta, autor de Distrito federal, entre outros livros.